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  • Qualis - Comunicação

Prólogo de Notas de Amor - Cristina Valori


No fundo, Felícita sempre soubera que os pais não apareceriam. Entretanto, a esperança ao longo de todos aqueles anos fora sua companheira e verdadeira amiga. Desde criança, ela entendera que se apegar a esse sentimento a mantinha sã, evitando, assim, que a mágoa tomasse conta do seu coração por completo. Aquele mar de tortura apenas era amenizado pela figura da sua avó, que acalentava toda a frieza que sentia. Enquanto os olhos dançavam pelo público, Felícita tentou ignorar a tristeza ao perceber que, de todos ali, somente dois rostos conhecidos vieram prestigiá-la, e ela se perguntou como poderia ser diferente. Felícita não tinha amigos... Determinada a não permitir que nada estragasse a estreia como cantora, deixou a voz vibrar pelo bar, expulsando todo o ressentimento. A cada acorde soado pelos alto-falantes, ela reprimia as imagens da infância e se agarrava à promessa de que sua apresentação a levaria para longe de toda aquela dor. Aplausos e assovios ao término do show serviram para confirmar o que Felícita tinha certeza: a música era o caminho. Encantar multidões e levar sua voz a um patamar onde não houvesse mais retorno. — Porra! Você foi demais. — Paulinha, que por obra do destino conseguira seu lugar no pequeno rol de amigos, gritou assim que Felícita desceu do palco. — Sabia que você seria um sucesso. — Ah... Obrigada — a cantora respondeu depois de retribuir o abraço. — Você gostou mesmo? — Claro! Você sabe que sou sincera. Eu amei, e o público também. Venha, vamos comemorar! Com a garganta seca, ela correspondeu com sorrisos alguns elogios que foram destinados a ela durante o caminho até o bar. Porém, antes de chegar ao destino, enxergou Salete empurrando as pessoas na tentativa de se aproximar. No mesmo instante, Felícita percebeu que o ressequido que sentia não tinha nada a ver com sede e, sim, com os sentimentos despertados naquela noite. — Feliz aniversário, minha menina. — Salete a rodeou com seus braços quentes. O misto de proteção e aconchego de sempre a envolveu. E, como acontecia quase que de forma involuntária, Felícita relaxou a postura impenetrável para os demais e permitiu externar o abandono através das lágrimas. — Não chore, por favor... — a avó sussurrava em seu ouvido. — Eu sei o quanto queria que eles estivessem aqui, mas você, mais do que ninguém, os conhece. — Salete a soltou, deslizando os dedos macios sob os olhos da neta. — Hoje é um dia muito importante! Você estava maravilhosa. Todos os anos em que trabalhamos juntas, enfim, surtiram o efeito que tanto almejamos. Estou tão orgulhosa! Depois de receber o carinho da avó e a enxurrada de palavrões – de acordo com Paulinha, todos relacionados às congratulações –, Felícita parecia mais calma e feliz. A contragosto das meninas, Salete se despediu justificando sua saída com a simples afirmação: “não tenho mais idade para isso”. A princípio e um tanto resoluta, Felícita ignorou os pedidos da amiga para que ela comemorasse a grande noite. Entretanto, Paulinha era conhecida principalmente pela insistência. Sem escapatória, Felícita aceitou o primeiro shot de tequila que a morena lhe serviu. E, após algum tempo, essa conta se perdeu em meio às risadas, o bom e velho rock-and-roll que vinha do palco e as luzes robóticas. — Ouvi falar que hoje é o seu aniversário... — a neta obediente virou-se à procura da voz sussurrada ao pé do seu ouvido. Mesmo com a visão turva pela bebida, o dono daquela melodia lhe despertou algum interesse. Felícita não se considerava uma namoradeira. Na verdade, namorado mesmo ela só tivera um. Santiago... Um rapaz bonito, de boa família, palavras gentis, carinhos em excesso, uma lábia invejável, mas que teve a destreza de terminar com o relacionamento através de uma mensagem no celular. — Bom, quem te contou, está coberto de razão. — Felícita desejou que a fala não tivesse fluído de forma embolada. Firmou toda a atenção no rosto à frente. Um homem bonito, cheio de sorrisos e intenções. Inclinou um pouco o corpo, na tentativa de observá-lo melhor. Bendito álcool encobrindo seus olhos! Pegou uma bala de hortelã e a levou à boca. — Que tal um brinde?! — Ele elevou o copo. Por um instante, Felícita hesitou, para depois, sorrindo, seguir o gesto. O dono dos cabelos compridos, alto e magro demais, aparentava ter menos idade do que os documentos comprovavam. Com uma cicatriz entre as sobrancelhas e a cor dos olhos escondida por lentes, o novo flerte de Felícita queria conquistá-la. Porém, o que ele não sabia era que ela, principalmente naquela noite, não precisava de conversas aleatórias. A nova atração do Bar Truly ansiava por rechear a data do aniversário e estreia com lembranças do seu novo caminho. Aquele rapaz, que parecia ter acabado de sair da faculdade, servir-lhe-ia perfeitamente. Pelo menos por uma noite... Felícita não queria compromissos ou amarras, e sexo com desconhecidos também não fazia parte do currículo, contudo ela precisava ser desejada, ser a única razão de alguém, nem que fosse por algumas horas. Por esse motivo, quando sentiu as mãos calejadas tocando seu braço e a puxando para um beijo, Felícita decidiu que não haveria problemas em retribuir.

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